quinta-feira


PARIS, 1453

Tudo começou com o fim. É estranho pensar isso, já que irremediavelmente as coisas tendem a começar pelo início. Mas nesse caso, o fim é o início mais propício. As sensações vieram à tona, numa imensa fúria, como que provocadas por um soco no estômago. Uma ânsia fez com que as coisas ao redor se mostrassem com maior clareza. A meia luz naquela ante-sala obscura fazia com que o atordoamento se estendesse ao longo dos minutos. Olhou para sua frente e a única coisa que pôde distinguir naquele ambiente opaco, foi o vulto de uma cama, onde uma figura envolvida pelo breu jazia inerte.
            Forçou os olhos o máximo que pôde, numa vã tentativa de distinguir uma forma, um molde, alguma coisa que distinguisse e determinasse a espécie do alvo de observação. Mas mesmo esforçando-se ao extremo, não conseguiu grandes progressos. Só então se lembrou de olhar para si e pôde então perceber o estado lastimável no qual se encontrava. Suas vestes contrastavam com a sua pele alva. Sujas e rasgadas, os panos que lhe cobriam o corpo pareciam querer se libertar e deixá-lo ao bel prazer do que sucederia depois.
            Levou a mão ao rosto num gesto desesperado. A garganta seca, os olhos ardendo, a pele enrugada. Abaixou as mãos e voltou a se concentrar na cama. Olhou ao redor e certificou-se estar só. A penumbra em que estava, tornava-se pouco a pouco menos opaca. Pensou em se levantar da cadeira onde se encontrava, mas foi impedido por um pensamento, pelo receio de estar preso aquela cadeira. Sem ter coragem suficiente para se desprender de onde estava, achou melhor clamar por ajuda. Puxou o ar dos pulmões e tentou gritar por alguém, porém, nenhum som saiu de seus lábios.
            O desespero começou a tomar conta daquele indivíduo. O medo paralisou-lhe os pensamentos, e as ações, mesmo aquelas mais simples, lhe pareceram naquele momento impossíveis de serem realizadas. Tentou recordar como viera parar ali, onde estivera mais cedo. Mas era como se uma nuvem cinza lhe encobrisse os pensamentos.
            Pensou em pedir ajuda ao desconhecido da cama. Mas como fazer para atrair a atenção do outro, que jazia distante, sem que nenhum som ou movimento dele saísse? Reunindo às últimas forças que lhe restavam, decidiu por levantar e ir de encontro ao outro,
Um misto de felicidade e alívio se deu ao perceber que seus membros inferiores lhe obedeciam. Lentamente começou sua caminhada em direção à cama.
            No curto trajeto observou o ambiente lúgubre no qual se encontrava. Imagens sacras espalhadas pelo recinto davam ao lugar uma aura mística e mórbida. Um velho baú de carvalho encontrava-se aberto num canto. Roupas em total desalinho estavam espalhadas pelo chão, como que a denunciar a presença de um ser em fuga. Da janela semi aberta, vinha uma brisa suave, mas fria, que mexia as cortinas de seda branca, dando a impressão de que havia alguém a brincar por entre elas.
            Voltou a olhar para a cama. Estava mais perto agora. Já podia distinguir as formas de um homem. Pensou em parar e evitar um confronto com alguém que ele sequer conhecia, mas a curiosidade lhe impeliu a ir em frente, e mesmo sem estar por todo certo do que queria, continuou a andar.  Agora estava a poços passos do seu alvo. Caminhou o mais lento possível, preocupado com a reação do outro, que se mantinha impassível. Finalmente, chegou ao lado do enfermo, que jazia coberto da cabeça aos pés. Suas mãos automaticamente se dirigiram  às cobertas e de supetão, o rosto do homem surgiu.
            Atordoado com a revelação, ele voltou para o lugar de onde saíra, desesperado, escondendo o rosto com as mãos, numa tentativa vã de apagar da memória o que acabara de testemunhar. Precisava apagar de sua memória, seu próprio rosto desfalecido, vencido pela peste.