segunda-feira

ANTES QUE TUDO ACABE


ANTES QUE TUDO ACABE...

TEXTO DE THIAGO RIBEIRO 

(Foco no centro do palco. Uma pequena mesa com uma cadeira onde o personagem se encontra sentado de costas para a platéia. Aos poucos se vira para platéia, a olhar um ponto fixo, como se estivesse em transe. De repente ele desvia o olhar para uma arma em cima da mesa.) 

ALVARO – Culpado. Não consigo me lembrar do momento exato que cheguei a este ponto no qual me encontro agora. Essa agonia que me perturba me acompanha desde que me entendo por gente. Culpa. Uma angústia desmedida, uma sensação de que nada que eu faça, por melhor que seja, vai ser bom o suficiente. Busquei a realização nos livros. Passei a ignorar o mundo real e só acreditava naquilo que podia ler. Cresci cada vez mais submerso na solidão das letras. Era de se imaginar que eu me tornasse escritor por causa disso. Era o que todos achavam. Era o que eu achava. Mas não foi o que aconteceu. Tornei-me escrivão. Isso mesmo. (Irônico) Nada mais nada menos que um digno escrivão de polícia. No começo consegui ignorar a crueza daquele ambiente gélido, certo de que eu nada tinha a ver com aquele lugar, mas com o passar do tempo, fui criando um certo prazer em conviver com aqueles homens asquerosos que se diziam fazedores da lei. Putas, bêbados, ladrões, assassinos e estupradores. Com todos convivi, absorvendo numa ânsia infernal suas histórias, seus medos, eu me alimentava das suas fraquezas. Crescia em mim um prazer mórbido em escrever linha por linha de seus depoimentos, acrescentando vez ou outra um detalhe que eu julgava necessário. EU ERA DEUS!! E daí que não fossem detalhes reais? Quem haveria de investigar? Todos se diziam inocentes. E alguns realmente eram. Mas era impossível distingui-los dos demais. Sempre me julguei incapaz de me envolver com seus clamores de piedade, seus pedidos de ajuda. Até conhecer Tereza. Tereza surgiu num fim de tarde cinzento. (Som de caixa de música, porta jóias) Sua imagem surgiu nebulosa, em meio à nuvem de fumaça de cigarro que imperava no ambiente. Passou por mim em direção às celas. Por uma fração de segundo tive a sensação de que me lançara um olhar. A princípio julguei que fosse um olhar de desejo. Depois, ao analisá-lo melhor, percebi se tratar de um olhar de desdém, no máximo, de curiosidade. É. Talvez seja essa a palavra certa. Curiosidade. Segui seu corpo com o olhar. Por um momento pensei em interromper sua passagem e convidá-la para tomar um café. Ora, logicamente que minha intenção passava longe de tomar um simples café. Aquela mulher me atraía de maneira perigosa. E eu gostei disso. Decidi que convidaria Tereza para o café. Esperei impaciente que terminasse sua visita. A propósito, viera visitar um primo, envolvido com alguns assaltos. Um, dois, três, quase uma carteira de cigarros depois, Tereza voltou. Ao passar por mim, novamente me lançou um olhar. Pude perceber o quão tristes eram seus olhos. Olhos de angústia. Uma angústia na qual eu me reconheci. Segui seus passos pela rua gelada, fruto de uma chuva na noite anterior. Não demorou para que ela se notasse seguida. Virou-se e sem nenhuma surpresa por me encontrar ali, dirigiu-se até mim e me beijou. Um beijo diferente de todos. Sua língua percorreu minha boca com uma intensidade, que me fez ter medo, e recuei. Surpresa deu-me as costas, disposta a seguir em frente. Avancei e segurei seu braço. Levei-a pra minha casa. E ali mesmo, no meu refúgio, entre livros e bitucas de cigarro, comi Tereza. Nosso caso durou cerca de quatro semanas, onde nos encontrávamos dia sim, dia não. Tereza conseguia se fazer presente ma minha vida. E assim foi, até o dia que revelou que iria me deixar. Atônito só pude fazer a pergunta mais óbvia de todas: Por que? Minha pergunta ficou sem resposta. Vi com tristeza, ela arrumar seus pertences, e cruzar a porta numa despedida silenciosa. Assim se foi Tereza. Caí em depressão profunda. Afundei me em álcool e drogas, transformando-me no que realmente todos esperavam que eu me tornasse, um nada. Procurei Tereza por todos os lugares que imaginei que fosse encontra-la. Puteiros, favelas, hospitais, delegacias. Mas não tive êxito em nenhum desses lugares. Era como se ela tivesse evaporado. Sumido no ar, como se nunca tivesse existido. Tempos depois, quando a imagem de Tereza já era nada mais que uma penumbra, encontrei-a a caminhar pelas ruas do centro da cidade. Mostrou-se surpresa ao ver meu estado deplorável. Pedi-lhe que fosse comigo para casa. Ela se negou. Disse-lhe que se não fosse, me mataria. Olhou-me duvidando. Pela minha expressão percebeu que eu falava sério. Decidiu me acompanhar. Tivemos uma tarde de regrada a luxúria e perversão, perversão essa que atingiu seu ápice quando atirei em Tereza, que surpresa, esboçou seu ultimo sorriso, caindo inerte no chão. Agora, me dirijo pro mesmo lugar que Tereza. Ao único caminho possível para mim. A morte.

(Ele levanta e pega uma arma. Tenta atirar, ela falha, ele tenta algumas vezes, todas as tentativas falham. Ele sai, à medida que um black toma o palco. Ouve-se um som de tiro. A arma funcionou.). 

Um comentário:

Simone A. disse...

Parabéns Thiago Ribeiro, coisa difícil é encontrar alguém em salvador que goste de literatura noar, encontrar alguém que escreve então, nem se fala.
Não li tudo do blog, mas o texto "ANTES QUE TUDO ACABE..." chamou atenção, parabéns.