Ela abriu o chuveiro e deixou que a água escorresse pelo seu corpo. Sentiu a temperatura do ambiente se aquecer aos poucos. Fechou os olhos, pegou o sabonete e com ele percorreu cada parte do seu corpo, fazendo desenhos com a espuma que a mistura com a água produzia. Ensaboou-se lentamente, curtindo o prazer de tocar o próprio corpo. Corpo que era tocado por muitos. Homens que passavam por ela sem jamais olhá-la nos olhos. Homens que se satisfaziam com o pouco de afeto que ela lhes ofertava. Fechou o chuveiro e secou-se rapidamente. Sentou-se na tampa da privada e acendeu um cigarro. E ali, recostada, lembrou-se da noite anterior, procurando reaver cada detalhe daquele encontro tão inesperado. Já passava da meia noite, era um dia de fraco movimento e ela quase não faturara nada, mesmo tendo rodado de um canto a outro. Resignou-se a voltar pra casa, e assim o fazia quando ao atravessar o viaduto, trajeto que fazia todos os dias, exceto nos dias que não tinha carona de algum cliente, deparou-se com ele. Debruçado sobre a grade, distraído a olhar o pouco movimento dos carros que passavam lá em baixo, ele não se deu conta da presença dela. Ela ainda pensou se deveria interromper os devaneios do rapaz, que ainda se mantinha concentrado lá embaixo, ou se deveria seguir seu caminho. Na dúvida, resolveu arriscar:
Marina – Tem um cigarro?
Só então ele tomou consciência da sua presença. Olhou-a de cima a baixo, com uma expressão de interrogação estampada no rosto.
Miguel – Desculpa, não entendi.
Marina – Eu perguntei se você tem um cigarro. Você tem?
Miguel – Desculpa, eu não fumo.
Marina – Pena
Miguel silenciou. Não sabia o que dizer, aliás, nem sabia se gostaria de continuar aquela conversa. Viera até ali, seu refúgio secreto, para pensar, o que sempre fazia quando tinha grandes dilemas para resolver. Ou até mesmo, só quando queria respirar um pouco. Olhar as luzes da cidade lhe fazia bem. Ele costumava dizer que se alimentava de luz. Daquelas luzes em especial. Das luzes dos carros que se movimentavam frenéticos, das luzes dos postes que mal e mal ainda funcionavam. Das luzes das casas que insistiam em contrariar a escuridão da noite. E talvez até da luz da lua, quando esta ousava aparecer, mesmo que de maneira tímida, por entre os enormes arranha-céus. Mas a moça parecia não querer ir embora. Na verdade, ela o olhava curiosa. Marina pensara no primeiro momento que ele se tratava de um potencial cliente. Mas depois ficou na dúvida. Ele a olhou nos olhos no instante que ela lhe pedira o cigarro. Foi um momento breve, mas suficiente para que ela notasse um certo brilho no olhar do rapaz. Resolveu insistir.
Marina – Posso saber teu nome?
Miguel – Miguel. Meu nome é Miguel.
Marina – Bonito nome. Miguel. Nome de anjo.
Miguel – E o teu?
Marina desconversou.
Marina – O que um rapaz tão bonito e com nome de anjo faz aqui há essa hora?
Miguel – Pensando na vida.
Marina – Tão longe de casa?
Miguel – Mas você nem sabe onde eu moro.
Marina – Você não tem cara de que é daqui dessas áreas não.
Miguel – E realmente não sou. Eu moro longe daqui.
Marina – Então. Não vai me dizer o que ta fazendo sentado aqui há essa hora?
Miguel – Você quer mesmo saber?
Marina – Eu quero. Mas se você não quiser falar, tudo bem.
Miguel – Tudo bem. Não é nada demais. Eu gosto de vir aqui quando eu tenho alguma questão muito importante pra resolver. Eu costumo vir e ficar olhando o movimento dos carros. Eu geralmente venho ao entardecer, acho mais poético. Aí aos poucos essa paisagem vai ficando mais e mais vazia e eu imagino que os meus problemas vão diminuindo cada vez e mais, igual a quantidade de carros. Quando me dou conta, geralmente já é muito tarde e eu nem percebo o tempo passar.
Marina – Eu posso saber qual o motivo da preocupação de hoje?
Miguel olhou novamente e tentou ler em seus olhos o que existia por detrás daquela pergunta. Fixou-se nos cabelos da moça, que sob a luz do luar adquiriam uma cor vibrante, como se estivessem se desprendendo no ar. Ela sorria, e parecia-lhe que tudo ao seu lado começava a andar de repente em câmera lenta.
Marina – E então? Qual foi o grande problema?
Miguel – Problemas... afetivos.
Marina – Ah, eu logo saquei que tinha mulher na parada!
Miguel – É. De certa forma, é isso.
Marina – Mas olha, seja lá qual foi o problema, ficar assim não vai resolver.
Miguel – Eu sei. E já tentei dizer isso pra mim mesmo, mas não adianta. Eu acabo sempre vindo pra cá. E só.
Marina – Olha só, vou te ajudar.
Miguel – Você?
Marina – É.
Miguel – Não acredito muito que você possa me ajudar.
Marina – Porquê? Por que eu sou prostituta?
Miguel – Não. Não é isso. Desculpa se pareceu que eu estava desdenhando da sua ajuda. Mas é que pro meu problema você não pode me dar uma solução.
Marina – Será?
Miguel – Tenho quase certeza.
Marina – Eu pago pra ver. Vem comigo. Eu conheço um barzinho aqui perto, a gente bebe um pouquinho, conversa, se distrai, passa o tempo. E então? O que cê me diz? E então? Aceita?
Miguel – Mas você nem me conhece. E seu eu for um bandido?
Marina – Com essa cara de cachorro que caiu do carro da mudança? Vem comigo. Pelo menos pela companhia, que eu sei que não é grande coisa, mas pelo menos quebra um galho.
Miguel olhou nos olhos dela e sentiu que naquele momento, e ele não sabia explicar o porquê, ela pedia-lhe socorro em silêncio. E ele se reconheceu nela. Levantou-se e saíram os dois a caminhar pelas ruas a procura do tal bar. Entraram e pediram duas cervejas. Duas que se transformaram em quatro. Depois, em seis, oito, dez, e até que decidiram ir embora.
Marina – Pensa no que eu te falei. Bola pra frente cara. Não é por quê uma história não deu certo que todas vão dar, entende?
Miguel – Eu tenho medo. Medo do amanhã, medo de acordar e não conseguir amar mais ninguém...
Marina – Deixa de ser bobo. O que sempre morre é a paixão. E essa quando morre quase sempre é definitiva. Mas o amor não, o amor renasce sempre. E de onde a gente menos espera. Agora deixa eu ir que já deu minha hora. Fica bem tá?
Miguel – Fica comigo hoje.
Marina – Oi?
Miguel – Fica comigo hoje!
Marina – Por quê?
Miguel – Por quê eu tô precisando de afeto. E por quê você ainda não me disse seu nome.
Foram abraçados no táxi. Chegaram ao apartamento dele.
Miguel – O banheiro é ali.
Marina se dirigiu para onde ele apontava e trancou-se lá dentro. Olhou seu rosto no espelho e se achou horrorosa. Tateou na bolsa pelo estojo de maquiagem e começou a pintar-se novamente. Subitamente parou e achou que o resultado estava ficando pior. Resolveu tirar tudo. E lavou o rosto, ficando limpa de qualquer pintura. E achou que ficou melhor assim. Ao sair do banheiro encontrou Miguel na sala, olhando para uma foto que se destacava em meio a tantas outras num painel na parede.
Marina – Miguel?
Miguel – Oi.
Marina – Obrigada por tudo.
Miguel – De nada.
Miguel olhou-a novamente e desejou ir com ela. Desejou amá-la com toda a intensidade.
Miguel - O quarto é ali em frente. Você pode deitar lá. Os lençóis estão limpos.
Desejou que seu coração estivesse desimpedido para que ele pudesse se sentir livre ao deitar naquela cama e se lançar nos braços dela, que subitamente lhe pareciam tão acolhedores.
Marina – Você não vem?
Olhou novamente para a foto e não pôde evitar que uma lágrima escorresse pelo seu rosto. Tentou disfarçar.
Miguel – Já estou indo...
Marina – Esse cara da foto. Quem é?
Miguel limpou o rosto com as costas da mão.
Miguel – Ele é... um... é um amigo.
Marina estendeu-lhe os braços.
Marina – Vem!
E ele foi.
E amaram-se por toda noite, sem pudores, sem culpa, sem que parassem um momento sequer para pensar numa possível culpa que viria no dia seguinte. Amaram-se apenas. Marina se levantou e mirou seu rosto no espelho. Sem vestígios de ressaca. Dirigiu-se até o quarto e vestiu a roupa da noite passada. Olhou para Miguel, que dormia tranqüilo, e pegou a bolsa. Ao chegar na sala, olhou a foto no sofá. Quis olhar melhor. Pegou e percebeu que atrás existiam algumas letras, quase apagadas pelo tempo. Depois de algum tempo conseguiu decifrá-las.
“Te amo, Miguel.
Ass: Gabriel.”
Ela colocou a foto de volta. Tomou um café requentado na cozinha, olhou em volta e saiu. Quando Miguel acordou, procurou-a pela casa e só mais tarde, quando dela já tinha quase esquecido, encontrou um bilhete, preso na porta da geladeira.
“Obrigada pela afeto.
Até a vista.
Marina.”