De todas as doenças e malefícios sofridos e descobertos pela humanidade, a paixão é a forma mais destrutiva quando acontece de maneira desenfreada. Aos que amam, deseja-se que sejam correspondidos e caso não o sejam, que sofram o mais breve possível. O sofrimento de amor é aquele que não te atinge fisicamente, a menos que o cidadão seja afeito a mutilações bárbaras ou no mínimo, à decadência provocada pelo consumo de álcool e outras drogas. Quando não se corresponde a uma paixão de tão bom grado oferecida, corre-se o risco de sofrer por osmose do mesmo malefício futuramente. A paixão desmedida tempera romances e movimenta a vida de moças com o passar dos séculos e mesmo com a gente se acostumando com essa presença em nossas vidas, nos surpreendemos com o seu furor, o qual se manifesta quando menos esperamos, no ápice da intensidade. Mas o fato é que a paixão não dura para sempre, graças a Deus, para o bem e para o mal. A paixão surge, queima, destrói, arrasa e depois se abranda. Parte deixando poucos vestígios e é depois que parte é como se estivéssemos mais fortes, mais crescidos, menos ingênuos. Até que tudo recomece, ardendo e queimando, como de praxe.
"(...) Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos."
domingo
Breve Parágrafo Sobre a PAIXÃO.
sábado
AFETO
Marina – Tem um cigarro?
Só então ele tomou consciência da sua presença. Olhou-a de cima a baixo, com uma expressão de interrogação estampada no rosto.
Miguel – Desculpa, não entendi.
Marina – Eu perguntei se você tem um cigarro. Você tem?
Miguel – Desculpa, eu não fumo.
Marina – Pena
Miguel silenciou. Não sabia o que dizer, aliás, nem sabia se gostaria de continuar aquela conversa. Viera até ali, seu refúgio secreto, para pensar, o que sempre fazia quando tinha grandes dilemas para resolver. Ou até mesmo, só quando queria respirar um pouco. Olhar as luzes da cidade lhe fazia bem. Ele costumava dizer que se alimentava de luz. Daquelas luzes em especial. Das luzes dos carros que se movimentavam frenéticos, das luzes dos postes que mal e mal ainda funcionavam. Das luzes das casas que insistiam em contrariar a escuridão da noite. E talvez até da luz da lua, quando esta ousava aparecer, mesmo que de maneira tímida, por entre os enormes arranha-céus. Mas a moça parecia não querer ir embora. Na verdade, ela o olhava curiosa. Marina pensara no primeiro momento que ele se tratava de um potencial cliente. Mas depois ficou na dúvida. Ele a olhou nos olhos no instante que ela lhe pedira o cigarro. Foi um momento breve, mas suficiente para que ela notasse um certo brilho no olhar do rapaz. Resolveu insistir.
Marina – Posso saber teu nome?
Miguel – Miguel. Meu nome é Miguel.
Marina – Bonito nome. Miguel. Nome de anjo.
Miguel – E o teu?
Marina desconversou.
Marina – O que um rapaz tão bonito e com nome de anjo faz aqui há essa hora?
Miguel – Pensando na vida.
Marina – Tão longe de casa?
Miguel – Mas você nem sabe onde eu moro.
Marina – Você não tem cara de que é daqui dessas áreas não.
Miguel – E realmente não sou. Eu moro longe daqui.
Marina – Então. Não vai me dizer o que ta fazendo sentado aqui há essa hora?
Miguel – Você quer mesmo saber?
Marina – Eu quero. Mas se você não quiser falar, tudo bem.
Miguel – Tudo bem. Não é nada demais. Eu gosto de vir aqui quando eu tenho alguma questão muito importante pra resolver. Eu costumo vir e ficar olhando o movimento dos carros. Eu geralmente venho ao entardecer, acho mais poético. Aí aos poucos essa paisagem vai ficando mais e mais vazia e eu imagino que os meus problemas vão diminuindo cada vez e mais, igual a quantidade de carros. Quando me dou conta, geralmente já é muito tarde e eu nem percebo o tempo passar.
Marina – Eu posso saber qual o motivo da preocupação de hoje?
Miguel olhou novamente e tentou ler em seus olhos o que existia por detrás daquela pergunta. Fixou-se nos cabelos da moça, que sob a luz do luar adquiriam uma cor vibrante, como se estivessem se desprendendo no ar. Ela sorria, e parecia-lhe que tudo ao seu lado começava a andar de repente em câmera lenta.
Marina – E então? Qual foi o grande problema?
Miguel – Problemas... afetivos.
Marina – Ah, eu logo saquei que tinha mulher na parada!
Miguel – É. De certa forma, é isso.
Marina – Mas olha, seja lá qual foi o problema, ficar assim não vai resolver.
Miguel – Eu sei. E já tentei dizer isso pra mim mesmo, mas não adianta. Eu acabo sempre vindo pra cá. E só.
Marina – Olha só, vou te ajudar.
Miguel – Você?
Marina – É.
Miguel – Não acredito muito que você possa me ajudar.
Marina – Porquê? Por que eu sou prostituta?
Miguel – Não. Não é isso. Desculpa se pareceu que eu estava desdenhando da sua ajuda. Mas é que pro meu problema você não pode me dar uma solução.
Marina – Será?
Miguel – Tenho quase certeza.
Marina – Eu pago pra ver. Vem comigo. Eu conheço um barzinho aqui perto, a gente bebe um pouquinho, conversa, se distrai, passa o tempo. E então? O que cê me diz? E então? Aceita?
Miguel – Mas você nem me conhece. E seu eu for um bandido?
Marina – Com essa cara de cachorro que caiu do carro da mudança? Vem comigo. Pelo menos pela companhia, que eu sei que não é grande coisa, mas pelo menos quebra um galho.
Miguel olhou nos olhos dela e sentiu que naquele momento, e ele não sabia explicar o porquê, ela pedia-lhe socorro em silêncio. E ele se reconheceu nela. Levantou-se e saíram os dois a caminhar pelas ruas a procura do tal bar. Entraram e pediram duas cervejas. Duas que se transformaram em quatro. Depois, em seis, oito, dez, e até que decidiram ir embora.
Marina – Pensa no que eu te falei. Bola pra frente cara. Não é por quê uma história não deu certo que todas vão dar, entende?
Miguel – Eu tenho medo. Medo do amanhã, medo de acordar e não conseguir amar mais ninguém...
Marina – Deixa de ser bobo. O que sempre morre é a paixão. E essa quando morre quase sempre é definitiva. Mas o amor não, o amor renasce sempre. E de onde a gente menos espera. Agora deixa eu ir que já deu minha hora. Fica bem tá?
Miguel – Fica comigo hoje.
Marina – Oi?
Miguel – Fica comigo hoje!
Marina – Por quê?
Miguel – Por quê eu tô precisando de afeto. E por quê você ainda não me disse seu nome.
Foram abraçados no táxi. Chegaram ao apartamento dele.
Miguel – O banheiro é ali.
Marina se dirigiu para onde ele apontava e trancou-se lá dentro. Olhou seu rosto no espelho e se achou horrorosa. Tateou na bolsa pelo estojo de maquiagem e começou a pintar-se novamente. Subitamente parou e achou que o resultado estava ficando pior. Resolveu tirar tudo. E lavou o rosto, ficando limpa de qualquer pintura. E achou que ficou melhor assim. Ao sair do banheiro encontrou Miguel na sala, olhando para uma foto que se destacava em meio a tantas outras num painel na parede.
Marina – Miguel?
Miguel – Oi.
Marina – Obrigada por tudo.
Miguel – De nada.
Miguel olhou-a novamente e desejou ir com ela. Desejou amá-la com toda a intensidade.
Miguel - O quarto é ali em frente. Você pode deitar lá. Os lençóis estão limpos.
Desejou que seu coração estivesse desimpedido para que ele pudesse se sentir livre ao deitar naquela cama e se lançar nos braços dela, que subitamente lhe pareciam tão acolhedores.
Marina – Você não vem?
Olhou novamente para a foto e não pôde evitar que uma lágrima escorresse pelo seu rosto. Tentou disfarçar.
Miguel – Já estou indo...
Marina – Esse cara da foto. Quem é?
Miguel limpou o rosto com as costas da mão.
Miguel – Ele é... um... é um amigo.
Marina estendeu-lhe os braços.
Marina – Vem!
E ele foi.
E amaram-se por toda noite, sem pudores, sem culpa, sem que parassem um momento sequer para pensar numa possível culpa que viria no dia seguinte. Amaram-se apenas. Marina se levantou e mirou seu rosto no espelho. Sem vestígios de ressaca. Dirigiu-se até o quarto e vestiu a roupa da noite passada. Olhou para Miguel, que dormia tranqüilo, e pegou a bolsa. Ao chegar na sala, olhou a foto no sofá. Quis olhar melhor. Pegou e percebeu que atrás existiam algumas letras, quase apagadas pelo tempo. Depois de algum tempo conseguiu decifrá-las.
“Te amo, Miguel.
Ass: Gabriel.”
Ela colocou a foto de volta. Tomou um café requentado na cozinha, olhou em volta e saiu. Quando Miguel acordou, procurou-a pela casa e só mais tarde, quando dela já tinha quase esquecido, encontrou um bilhete, preso na porta da geladeira.
“Obrigada pela afeto.
Até a vista.
Marina.”
Cotidiano
- Alô?
- Alô! Boa tarde! Gostaria de falar com a senhora Odete da Silva Barbosa. Ela se encontra?
- Depende.
- Depende de quê?
- Depende de quem a procura.
- Quem procura obviamente sou eu.
- E você é mais alguma coisa além de um “eu”?
- Sou a oportunidade que a senhora esperava pra mudar de vida. A senhora estaria interessada?
- Hum. Muito me interessa mudar de vida. Você pode me oferecer isso?
- Isso e muito, muito, muito mais.
- Olha que assim que fico sem jeito.
- Sem jeito por que?
- Um sujeito que liga assim para a casa dos outros, e vem com essa conversinha com uma mulher desconhecida...
- Mas a senhora não é desconhecida. Pelo contrário. Sei de exatamente cada detalhe da sua vida.
- Jura?
- Absolutamente. Sei coisas que deixariam qualquer um de queixo caído.
- Ora, assim começo a ficar sem jeito. O que saberia o senhor sobre mim que deixaria os outros abismados?
- Coisas sujas!
- Não diga!
- Coisas pérfidas!
- Mentira!
- Coisas absurdas!
- Oxente! Conte de uma vez, criatura!
- Pra quê apressar as coisas? Antes me deixe informá-la das opções de negócios que poderemos efetuar juntos.
- Ora, mas eu não disse que topo.
- Topas?
- Topo!
- Preciso apenas fazer uma pergunta para efetuar nosso negócio! Preparada?
- Ahhh, não sei.
- Coisa rápida.
- Ah, ta bom.
- Eu quero saber... sua data de nascimento!!
- Ah é isso? E pra quê?
- Quero saber se a senhora tem o perfil do nosso negócio.
- Hum. Sei. Meu aniversário é 18 de março de 1978.
- Ok.
- E então?
- Então dona Odete. Infelizmente não poderemos concluir nosso negócio.
- Ué, por que?
- Por que consta no nosso sistema que a senhora não anda em dia com suas responsabilidades financeiras!
- Como assim, gente?
- A senhora não esteve ciente de suas obrigações!
- Continuo boiando!
- A senhora está suja na praça!
- Na praça? Como se eu to na cozinha de casa?
- Quero dizer que a senhora está com o nome sujo no Serviço de Proteção ao Crédito, vulgo SPC. E que não poderá comprar nem um quilo de sal na mercearia se não tiver dinheiro em mãos. Tudo isso por negligenciar contas atrasadas. Sabe como chamamos isso?
- Engano?
- Não! Trambique!
- Eu não sou trambiqueira!
- Não é o que diz seu histórico de devedora, dona Odete!
- Pois que seja, mas não tenho como pagar.
- Eu tenho uma sugestão!
- Diga!
- A senhora me presta um servicinho e aí ficamos quites.
- Que tipo de servicinho?
- Quer mesmo que eu responda?
- Acho melhor não.
- Eu também acho. Aliás, prefiro mostrar. Jantar hoje a noite?
- Na minha casa ou na sua?
- Na nossa! Meu amor! Te amo pururuquinha!
- Pururuquinha? Pôxa Oswaldir! Assim você acaba com toda a fantasia do negócio! Broxei.
- Mas também heim mulher, tanto tipo de gente pra tu ter fetiche e tu vai se interessar justo por um telemarketing! É dose.
FIM
quinta-feira
Talvez Para Sempre
16:40 - Saguão do aeroporto. Uma chuva torrencial cai lá fora. Ana caminha apressada empurrando um carrinho cheio de malas. Olha para todos os lados procurando a sua plataforma de embarque. Olha o bilhete da passagem e confere os números. Tudo parece estar ok. Ela segue em direção ao guichê. Para na fila. E ali, sem ter nada para fazer, ela começa a repensar toda a sua vida. Todas as suas escolhas, todas as coisas boas que vivera e tudo o que ainda estava pra viver. Percebe que uma das malas estava prestes a cair e estira o braço para mudá-la de posição e ao fazer isso seus olhos pousam na aliança em sua mão esquerda. Ficou a contemplá-la, absorvida em lembranças. De repente, assusta-se com o toque do celular, que vibra em sua bolsa. Ao olhar no visor do aparelho, não deixar de expressar sua surpresa e alegria. Quase de imediato atende.
Ana – Alô!
Ariel – Oi.
Ana – Oi.
Ariel – Tudo bem?
Ana – Tudo.
Ariel – E então?
Ana - Então o quê?
Ariel – Eu quero saber como é que a gente fica.
Ana – Sobre o quê você está falando?
Ariel – Você sabe, Ana. Eu tô falando da gente.
Ana – Eu pensei que a gente já tivesse conversado sobre esse assunto.
Nesse momento ela repara que tinha chegado sua vez. Ela deposita suas malas na esteira e espera a funcionária entregar o comprovante.
Ariel – (Insiste) Como é que a gente fica?
Ana – (Vencida) Ah, a gente fica como está. Cada um na sua.
Ariel – Eu não sei se eu consigo. Eu não tô preparado pra isso.
Ana – A gente nunca está. Mas não se pode fazer nada. Só aceitar.
Ele fica mudo na linha.
Ana – Ariel? Ariel? Você ainda tá aí?
Ariel – Eu não quero aceitar. Eu te amo.
Ana se dirige à plataforma de embarque. A voz no auto-falante já anunciava seu embarque para dali a alguns instantes.
Ana – Eu preciso desligar.
Ariel – Eu te amo.
Ana – O meu vôo sai já sair.
Ariel – Você ouviu o que eu disse?
Ana – E do quê que isso me adianta? Amar ou não amar não muda os fatos. Eu também preciso realizar os meus sonhos. Eu não posso ser feliz me sentindo incompleta.
Ariel – Eu preciso ficar com você. E eu preciso que você queira estar comigo.
Ana – Mas eu quis estar com você. Eu ainda quero. E mais do que isso, eu quis construir minha vida do seu lado. Teve um momento que eu achei que não era possível ser feliz sem você. E era uma sensação boa. Estranha, eu confesso, mas mesmo assim era bom imaginar que você me amava com tanta intensidade.
Ariel – Mas então...
Ana (Interrompe) – Me escuta! Me ouve! Pelo menos dessa vez me ouve. Para de ouvir o seu coração pelo menos uma vez e dá ouvidos à razão.
Ariel – Eu não preciso me afastar de você. Eu preciso de você perto de mim. Será que é tão difícil de entender assim?
Ana – Eu entendo. Entendo mais do que você imagina. Mas eu preciso viver outras coisas. Eu queria que você estivesse comigo. Mas eu sei que é uma escolha muito difícil de se fazer. Não é todo mundo que tem essa coragem de abandonar tudo o que têm e sair sem destino. Eu não te culpo por isso. Talvez a maluca seja eu.
Ariel – Fica! Fica comigo, por favor!
Ana – Agora é tarde. Não dá mais. Eu já fiz minha escolha. E parece que você já fez a sua.
Ariel – Então não tem mais jeito?
Ana – Não. Não dá mais.
Ariel – Isso é um adeus?
Ana – Um até breve.
Ana sente que a voz estava começando a ficar embargada. Resolve encerrar a ligação antes que fique mais difícil.
Ana – Eu tenho que ir.
Ariel – Me leva com você!
Ana – Eu já te expliquei...
Ariel – (interrompe) Não, eu tô falando sério. Eu vou com você.
Ana – Isso não é hora pra brincadeiras, Ariel.
Ariel – E quem disse que eu estou brincando? Olha pra trás.
Ana – O quê?
Ariel – Olha pra trás de você!
Ana dá um giro de noventa graus e fica cara a cara com Ariel diante dela. Ensopado, com uma mala nas mãos e com os olhos vermelhos, denunciando que ele havia chorado.
Ariel – Eu não sei viver sem você. Eu não consigo me imaginar vivendo num mundo onde você não habite.
Ana – Mas você vai abandonar tudo pra vir comigo?
Ariel – Eu não estou abandonando tudo. Por que tudo o que eu tenho é você. O resto são apenas detalhes.
Ana se joga nos braços de Ariel e beija-o ternamente. Agora sua felicidade estaria completa. E dessa vez, pra sempre.
terça-feira
Melancolia
“Sabe aqueles momentos em que você se pega pensando no que realmente vale a pena na sua vida? Eu penso. E o grande problema disso é pensar tanto e no fim das contas concluir que no fundo nada vale a pena. Só correr grandes riscos é que vale a pena. Ou não”.
PERSONAGENS:
RAQUEL – TÉO - LUISA - JOÃO
(Luz acende. Estão os quatro espalhados pelo espaço. Sem móveis. O ambiente é um apartamento quase vazio. Téo observa lá fora pela janela. Raquel está sentada brincando com um isqueiro, acendendo e apagando repetidas vezes. João deitado no colo de Luisa).
João – E o dia se foi. Ou melhor, mais um dia se foi. E nada de importante aconteceu. O dia vai terminar da mesma forma que começou...
Luisa – E poderia ter sido diferente?
Téo - Nós poderíamos ter feito alguma coisa que valesse a pena...
João - Eu não consigo imaginar nada que valha a pena nesse momento.
Raquel – Sempre se pode fazer alguma coisa.
João – Fazer o quê? Eu não tenho a menor vontade de fazer o que quer que seja.
Luisa – Não fazer nada também é fazer alguma coisa.
Raquel – Agora não dá mais tempo. Daqui a alguns minutos já vai ser meia noite. E de acordo com a tradição capitalista-socialista-sonhadora, é o momento exato de se fazer um pedido ao universo. (T) Se vocês pudessem fazer um pedido agora, o que é que vocês pediriam?
Luisa – Uma viagem. Paris.
Téo – Cigarros.
João – Um óbito decente!
Raquel – O quê?
João – Um óbito decente. Eu ia pedir pra morrer agora, nesse exato instante.
Luisa – Que bobagem. Que graça tem em pedir uma coisa que vai acontecer mais cedo ou mais tarde?
João – Mas eu não quero uma morte qualquer. Eu quero uma morte sem dor, sem sofrimento. De sofrimento já basta o que eu tive até aqui. (T) Você toparia morrer comigo?
Luisa – E por que eu morreria com você?
João – Sei lá. Por que a sua vida tá uma bosta igual a minha. Aliás, a nossa vida sempre foi uma bosta, nunca foi grande coisa. Pra gente como nós a única solução é morrer antes que a coisa fique preta de verdade.
Luisa – Eu não quero morrer, João. Pelo menos não agora. (T) E você, Raquel? O que é que você pediria?
Raquel – Não faço a menor idéia. A hipótese de ganhar alguma coisa de uma forma tão fácil já me faz ficar sem saber o que pedir. Na dúvida talvez eu pedisse o que toda mulher pediria numa situação dessas.
Luisa – Um namorado?
Raquel – Não. Sapatos. (As duas riem)
Téo – (observa lá fora) Vocês já prestaram atenção na quantidade de gente que circula por essas ruas quando a noite cai? Uma multidão que caminha solitária enquanto a grande maioria dorme. (Acende um cigarro). Pra onde será que toda essa gente vai, heim? Sabe que eu fico olhando essas janelas desses prédios, aí eu escolho uma e crio uma história. Eu gosto de imaginar quem é a pessoa que mora ali, o que ela faz, se é casada, se tem filhos, se mora sozinha. Se é feliz.
Raquel – (acende uma vela no chão) Sozinhas elas sempre são. Felizes talvez. Muitas são sozinhas mesmo quando estão rodeadas de um monte de gente. E ainda assim surpreendentemente algumas são felizes.
João - Pensa melhor, Lu. Olha a tua volta. Não tem pra onde correr. A gente chegou no fim da linha.
(Luisa se levanta e vai em direção a Téo que continua olhando lá fora).
Luisa – Que é que você tanto olha lá em baixo?
Téo – To olhando o nada. O nada e o tudo ao mesmo tempo.
Luisa – E como é que se faz isso?
Téo – É só você olhar um pouco além do que os seus olhos mostram. Um pouco além do óbvio.
Luisa – Continuo sem entender.
Téo – Esquece. É preciso anos de treinamento pra conseguir olhar além dessa paisagem cinza.
Raquel – Eu confesso que durante muito tempo eu tive medo dessa cidade. Sabe, um medo de ser engolida por ela. Medo de não conseguir ir em frente. Medo, apenas. (Apaga a vela).
João – Medo de quê?
Raquel – Do que eu poderia descobrir aqui. De descobrir que as coisas não são fáceis.
Luisa – Mas pra saber disso nem é preciso de treinamento. Nada nunca é fácil pra ninguém. Nunca é.
Raquel – Eu sei. Mas mesmo assim, a gente sempre acha que com a gente a coisa vai ser diferente. Vai ter uma pitada de romantismo. Essa babaquice toda de esperança que a gente vê no cinema e se ilude achando que na vida real acontece.
Téo – Sabe o que mais me intriga? É que essa gente que ta lá embaixo não existe mais. Você olha pra expressão de cada uma dessas pessoas e é como se você estivesse vendo sempre o mesmo rosto. E assim, dia após dia elas seguem em frente. Seguem apenas por seguir. Mecanicamente.
João – E eles têm escolha? Ou tu segue em frente ou então se mata! (Para Luísa) O que não é uma má idéia.
Luisa – Engraçado. Comigo foi diferente. Quando eu cheguei aqui eu me senti desafiada por esse mundo obscuro, sabe? (Feroz) Era como se uma força puxasse de mim uma vontade de brigar, de mostrar quem eu sou, que eu vim pra alguma coisa. A cidade me desafiava de uma forma que me obrigava a viver tudo com uma intensidade que ao invés de me assustar fazia com que eu desejasse cada vez mais estar aqui, vivenciando tudo o que eu vivia. (Caindo em si) Foi por isso que eu vim parar aqui. Vivenciei demais a coisa toda. (Todos riem).
João – Morre comigo?
Raquel – Eu sei o que você ta sentindo. É uma dor que dá no peito. Uma dor que não dói tanto fisicamente. Mas é como se te dessem a todo instante um tiro na alma. (Acende um cigarro) Eu sinto isso há tanto tempo. (T) Acabei me dando conta de que eu nunca fui feliz.
João – Ninguém é feliz. (Gritando) Ninguém é feliz nessa cidade de merda!! (Agarra Raquel) Morre comigo? Morre comigo? Morre comigo, porra!
(Ele começa gritando com Raquel, até que Luisa o puxa para si e aos poucos os dois vão caindo. João termina por aninhar-se no colo de Luisa, que passa a mão pelos seus cabelos, mas sempre com os olhos apáticos, sem brilho, como se não o enxergasse, num gesto visivelmente mecânico).
Raquel – Eu vou sair. Eu preciso de ar, respirar ar puro. (Ri irônica) Como se isso fosse possível. (Para Téo) Me faz companhia?
Téo – Não sei se sou a companhia que você procura.
Raquel – Pode até não ser é a que eu procuro. Mas no momento é a que eu preciso.
João – Lu?
Luisa – Fala.
João – Me dá um cigarro?
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