Um ROTEIRO DE THIAGO RIBEIRO
“Por quê você não foi embora enquanto ainda estava em meu coração? Agora que você habita a minha alma vai doer mais...”.
(Abre-se a cena. Estamos em um apartamento de tamanho médio, decorado humildemente, típico de um casal jovem. As ações acontecem na sala e na cozinha, que é uma cozinha básica, sem muitos enfeites, num ambiente sóbrio contrastando com as idades dos personagens. Na sala uma mesa no centro, com cigarros, chaves, um copo sujo e algumas moedas. Almofadas pelo espaço, e num canto uma pilha de jornais/revistas. Uma tv pequena se encontra ligada e sintonizada num telejornal qualquer. )
Ele se encontra sentado no chão, a cabeça entre as pernas, imóvel, acuado como se estivesse em transe. Ela está de costas para ele e de frente para a janela).
ELA – (virando para ele) Eu vou embora.
ELE – Por quê?
ELA – Por que eu quero. Por que não tenho mais pra onde ir. Eu já cheguei no meu limite aqui entre essas quatro paredes. Eu vou embora. (T) Eu vou te deixar. Eu preciso te deixar.
ELE – Pra onde você vai?
ELA – Não sei. Vou sair por aí. As melhores viagens são as que não têm destino certo. Preparei minha mala com pouca coisa. Tô levando o mínimo de bagagem possível.
ELE – Desde quando você ta planejando isso?
ELA - Você sabe... Esse sempre foi meu projeto de vida.
Ele – Com a diferença de que antes eu tava incluído nesse projeto.
Ela – (sentando na frente dele e pegando o rosto dele com as mãos) Mas agora você ta livre pra viver os seus projetos. Pra construir tudo o que você sonhou, tudo o que você sonha!
Ele – Eu não sei quais são os meus projetos. Quer dizer, eu até sei, mas todos eles estão ligados a você.
Ela – Bobagem, tudo o que se tem a fazer é cortar o que você planejou pela metade. O resultado vai ser a quantia ideal pra você. (Levanta e vai ao banheiro).
(Ele olha em volta de si, como se percebesse de repente o quão vazia era a sua vida. Vazia de tudo, de carinho, amor, bens materiais. É como se o que ele achava que era tão bom, subitamente não fosse realmente bom. Algo se quebrou.)
Ele – Quando acabou?
Ela – (Em Off) O quê?
Ele – (Fala mais alto) Quando acabou esse lance todo que a gente viveu?
Ela – (Voltando) Esse lance ridículo que os homens chamam de tolice e as mulheres de amor? (Ri) Sei lá. Eu não tenho essa resposta. Acho que ninguém nunca tem a resposta pra essa pergunta. (Séria) Mas caramba, por quê que você sempre tem que fazer essas perguntas sem sentido nas horas mais impróprias?
Ele – E quem disse que essa hora é imprópria pra saber o quê que aconteceu com a gente?
Ela – Eu to dizendo. Eu sei o que é melhor pra gente. (Pausa. Acende um cigarro) Você precisa apagar da cabeça essa imagem que você tem de mim, de folhetim do século dezoito.
Ele – O amor, ao contrário do que você pensa, não corrompe a visão que um tem do outro. Ele aprimora. (Se levanta) E o que te faz tão especial assim, a ponto de decidir o que é melhor pros outros?
Ela – Eu não sei o que é melhor para os outros. Eu sei o que é melhor pra você!
Ele – (Agressivo) Não sabe não. O melhor pra mim é estar perto de você. É compartilhar da sua vida, dos momentos mais angustiantes aos mais alegres. Eu preciso de você pra ser feliz!
Ela – (Irônica) Então eu sou realmente alguém que te faz muito feliz?
Ele – E que me faz sofrer um bom bocado também.
Ela – (Eufórica) Mas o amor não é isso? É um prazer misturado a um sofrer consciente que faz com que o indivíduo perca a razão, o sentido da vida. É por isso que dizem que o amor cega.
Ele – (Impressionado) Não lhe dói saber que quando você sair por aquela porta eu posso compartilhar das mesmas alegrias que um dia foram suas com outra pessoa?
Ela – Eu não penso nisso. Eu penso que quando eu sair por aquela porta, eu vou estar abrindo centenas de outras portas pra você. Eu tô encarando essa despedida como se fosse uma despedida de um viajante em uma cidade desconhecida sabe? Sempre prometendo voltar. Afinal, nada é definitivo nessa vida.
Ele – Eu não acredito que você tá comparando a nossa historia com um roteiro turístico. (T) Sabe quando foi que eu te perdi? No momento em que me entreguei a você como eu realmente sou. Limpo, de corpo, alma e defeitos. Foi aí que eu errei. Quebrei o encanto.
Ela – (Séria, apagando o cigarro) É esse o seu problema. Você não consegue perceber que a gente já chegou onde tinha que chegar. Já deu. É como chegar a um beco sem saída, ou melhor, onde existe uma saída, mas que só um de nós pode passar entendeu?
Ele – Entendi. Só não acho justo. Eu não acho justo você desconstruir tudo o que a gente viveu por nada. Agora eu vou ter que me contentar em ser apenas mais uma lembrança que você vai ter quando for mais velha. Eu imagino você bem velhinha abrindo um livro e encontrando uma foto nossa já amarelada pelo tempo, aí nesse momento vai passar pela sua cabeça um flash, com tudo o que a gente viveu. E quando você olhar ao seu redor e perceber que nada do que você tem é o que você sonhou pra sua vida, aí você vai lembrar de tudo o que desperdiçou. Vai querer voltar pra mim, e vai me encontrar solitário, esperando você numa casa na companhia de um bando de gatos remelentos. Que é que você acha disso?
Ela – (Rindo) Acho que você deve parar de assistir Almodóvar.
Ele – (Irritado) Por quê você não me leva a sério?
Ela – Nem você se leva a sério. Lembro como se fosse ontem, você tendo crises de riso no velório do seu avô.
Ele – (Saudoso) Ele mereceu. Nunca gostou de mim, dizia que eu era um moleque preguiçoso. No fundo era uma implicância por causa do meu pai. O velho odiava o meu pai. Nunca perdoou a minha mãe por ter casado com meu velho.
(Levanta e começa a pôr a mesa. Pega dois pratos e põe na mesa)
Ela – (Acende outro cigarro) Deve ser ruim ter uma família dividida pelo rancor assim.
Ele – Vem cá, quando você decidiu ir embora você já sabia o que ia me dizer?
Ela – Ah, eu ensaiei alguma coisa. Mas essas coisas nunca dão certo quando se tem um texto decorado. Soa falso. O melhor mesmo é você sempre ser autêntico. Garanto que dói menos.
(Ela levanta e recolhe o prato que ele colocou para ela e guarda).
Ele – Dói menos em quem diz ou em quem escuta?
(Ele volta e pega o prato novamente).
Ela – Nos dois ué. Tem coisa mais dolorosa do que você perceber que a outra pessoa está enrolada, sem saber como te dispensar?
(Ela toma o prato das mãos dele).
Ele – As vezes é por que a pessoa está insegura do que quer.
(Ele pega o prato de volta. Ela se senta conformada).
Ela –Isso pode até ser.
Ele – Levando isso em consideração, eu posso afirmar que pra você não foi nada difícil me dá um pé na bunda. Por quê você não foi embora quando eu achei que tinha você no coração? Agora que você habita minha alma vai doer mais.
Ela – Do jeito que você fala parece até que eu sou uma megera. Você tem que entender que eu só to fazendo isso por que...
Ele – (Interrompe brusco, levanta) Vai ver a culpa é minha mesmo. Sempre te supervalorizei. Acabei transformando você numa espécie de guia da minha vida. Você tinha o poder de me direcionar para tudo o que quisesse. Eu te dei o controle!
Ela – (Em tom de desafio) E quem te disse que eu queria o controle hã? Sabe que eu odeio essa forma desmedida de amor que você impõe pra mim? Eu mereço que você me odeie. Seja mais humano pombas! Será que você nunca percebeu que o que eu quero é aventura, é me jogar num abismo sem saber aonde eu vou cair? Eu não quero poder controlar a sua vida nem a de ninguém. Eu to tendo a coragem de jogar a minha aos quatro ventos. O que eu quero é ser livre. E o seu amor só me prende, ele não me libera pra amar mais nada. Nem a mim mesma.
Ele – (Saudoso) Semana que vem faz dois anos que estamos juntos. Dois anos. Vinte e quatro meses. E agora, não mais que de repente você se vai. Não prometendo sequer, uma visita na ceia de Natal.
Ela – Eu não disse que não faria uma visita. (Misteriosa) Pode ser que eu apareça de repente.
Ele – (Ansioso) Sério? Quando?
Ela – Coisa rápida. Gente superior nunca faz visita demorada.
Ele – Você acredita mesmo nisso?
Ela – Não. (Divertida) Li na Caras. Achei bonito.
Ele - Você vai levar alguma coisa daqui? Alguma lembrança?
Ela – Todas as lembranças que eu queria eu já tenho. Todas aqui. (Aponta para o coração)
Ele – Eu falo de coisas físicas, materiais. Não vai levar nada?
Ela – Acho que não. Não quero peso na bagagem.
Ele – Leva uma foto pelo menos. Não pesa nada.
Ela – Acho melhor não. O que os olhos não vêem...
Ele – Você sabe pra onde vai?
Ela – Nada certo. Vou sair por aí sem rumo. A graça da minha viagem é justamente as incertezas do dia de amanhã.
Ele – Você bem que poderia ser menos exótica e mais clichê na hora de se despedir de mim.
Ela – Como assim clichê?
Ele – Sei lá, fingir que está muito abatida pelo fim do nosso relacionamento. Chorar, me chamar de cafajeste, atirar coisas pela janela.
Ela – Você realmente faz questão desse tipo de cena?
Ele – Eu não, mas os vizinhos esperam que isso aconteça. Eles nos olham como se esperassem que fôssemos nos atracar a qualquer momento.
Ela – E desde quando você se interessa pela opinião dos seus vizinhos?
Ele – Não me interesso. Mas pelo menos nesse quesito a gente podia ser um pouco mais normal. Briga de casal é igual a último capítulo de novela: ninguém gosta, mas todo mundo vê. E se isso aqui fosse uma novela, eu provavelmente seria aquele personagem que é passado pra trás o tempo todo e que é motivo de chacota pra Deus e o mundo.
Ela – O mocinho?
Ele – Não, o CORNO!
Ela – Que idéia!
Ele – (Desconfiado) Pintou alguém não foi?
Ela – O quê?
Ele – Apareceu um outro cara na sua vida, é isso? E aí você quer ser feliz com ele e tá sem jeito pra me contar não é?
Ela – Por quê que pra vocês homens é sempre mais fácil creditar a culpa a outra pessoa, sendo que na maioria das vezes os culpados são vocês mesmos?
Ele – E se vierem atrás de você. O que eu digo?
Ela - Diz que eu morri. O que não é nenhuma mentira. Vou morrer nessa longa viagem. Talvez eu volte um dia. Mas como uma pessoa diferente. Sem vestígios dessa que você está vendo agora.
Ele – Ainda dá tempo de desistir dessa loucura.
Ela - Você tá enganado. Não há mais tempo. Eu já perdi tempo demais. E você também. Vai viver tua vida do jeito que você achar que deve e não do jeito que escolherem pra você.
Ele – (Irônico) Pode deixar. Não vou deixar mais ninguém comandar a minha vida.
Ela – (Levanta) Bom, deixa eu ir. Ta na minha hora.
Ele – (Levantando) Quer que eu chame um táxi?
Ela – Não, não precisa. Eu chamo lá embaixo.
Ele – Não quer pelo menos jantar? Você já sai abastecida. Fiz aquela carne de panela que você adora.
Ela – (Tentada) Aí já é golpe baixo! Esse é o meu...
Ele - ...prato favorito. Principalmente se vier acompanhado de suco de uva de caixinha. Fiz tudo pra você.
Ela – Eu não sei como eu vou viver agora sem esses mimos que você faz pra mim. E agora? O que eu faço?
Ele – Fica.
Ela – Olha, a gente já conversou sobre isso...
Ele – Ta se formando uma tempestade lá fora. Fica. Pelo menos por esta noite.
Ela – (Indecisa) Tá bom. Mas só por hoje. Amanhã bem cedinho eu vou embora.
Ele – Não precisa ter pressa. Eu não vou te amarrar aqui.
Ela – Como é que tá?
Ele – (Acendendo a vela no centro da mesa) Ah, parece que vai ser uma chuva daquelas. O céu está todo escuro.
Ela – (Olhando-o nos olhos) A natureza não me interessa. O que me interessa é o homem.
Ele – (T) As pessoas vão se apaixonar novamente, o romance nunca há de morrer.
Ela – Tom Jobim. O meu...
Ele – ...favorito. É, eu sei.
(Ele vai em direção ao som e liga. Sobe a música. CONSTRUÇÃO, de CHICO BUARQUE. Começam a comer. )
FIM